Sobre a Revista

Criada no ano de 2016 e atualmente avaliada com Qualis B4 nas áreas do Direito e da Sociologia, a Revista Direito e Democracia é uma publicação acadêmica dedicada à reflexão e ao debate sobre temas relevantes do universo jurídico e da democracia contemporânea. Com o objetivo de promover a troca de ideias entre operadores do direito, pós-graduandos, acadêmicos, autores e pesquisadores em geral, a revista abrange uma ampla gama de assuntos, incluindo direitos humanos, teoria do direito, políticas públicas e cidadania.

Publicada pelo Instituto Superior do Litoral do Paraná - ISULPAR, a revista busca não apenas disseminar conhecimento, mas também fomentar a crítica e a construção de soluções para os desafios enfrentados pela sociedade. Por meio de artigos, a Revista Direito e Democracia se estabelece como um espaço vital para a produção e a circulação de saberes, contribuindo para a formação de uma sociedade mais justa e democrática.

Em formato digital, a publicação ocorre duas vezes ao ano, com uma edição para cada semestre.

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Chamada para Submissão de Artigos Científicos (QUALIS CAPES B4) - 17ª Edição

02-06-2025

A Revista Direito & Democracia, publicação científica vinculada ao curso de Direito do Instituto Superior do Litoral do Paraná – ISULPAR, está com chamada aberta para a décima sétima edição, a ser lançada em outubro de 2025. Com avaliação Qualis CAPES B4, o periódico tem como missão promover o debate acadêmico qualificado, estimular a produção científica e ampliar os espaços de difusão do conhecimento jurídico. Trata-se de uma excelente oportunidade para pesquisadores(as) vinculados a Programas de Pós-Graduação em Direito (PPGDs) e demais áreas afins divulgarem suas reflexões e resultados de pesquisa.

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Edição Atual

v. 16 n. 16 (2025): Abril de 2025
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Apresentação do Seminário de Estudos Empíricos em Direito - 2024: Tecnopolíticas de Controle e Sistema de Justiça Criminal

Introdução

A Revista Direito e Democracia, editada pelo Instituto Superior do Litoral do Paraná (ISULPAR), tem se afirmado como um espaço qualificado para a divulgação de pesquisas jurídicas críticas, interdisciplinares e socialmente engajadas. Com foco na articulação entre teoria e prática, a revista busca contribuir para o fortalecimento de uma cultura acadêmica comprometida com os direitos humanos, a justiça social e a democratização do conhecimento jurídico, especialmente a partir de experiências situadas fora dos grandes centros acadêmicos.

Nesta edição especial, a revista incorpora uma seleção de trabalhos apresentados no Seminário de Estudos Empíricos em Direito – SEED 2024, cujo eixo temático “Tecnopolíticas de Controle e Sistema de Justiça Criminal” mobilizou pesquisadores(as) de diferentes regiões do Brasil e do exterior em torno de debates sobre tecnologias, poder e justiça. Os artigos reunidos refletem a diversidade teórica e metodológica que caracterizou o evento e reafirmam o compromisso da Direito e Democracia com a produção e circulação de saberes empíricos, críticos e transformadores.

O Seminário de Estudos Empíricos em Direito (SEED) nasceu em 2016, em Ponta Grossa (PR), quando um grupo de docentes e discentes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – em diálogo com a Universidade Vila Velha (UVV), a Unisecal e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – decidiu criar um espaço permanente para discutir pesquisa empírica em Direito. À época, a expressão “estudos empíricos” ainda causava estranhamento em muitos programas jurídicos brasileiros, tradicionalmente ancorados em análises dogmáticas e normativas. O SEED surgiu, portanto, como resposta a duas demandas convergentes: a necessidade de qualificar o debate acadêmico sobre a justiça, aproximando-o de dados concretos sobre o funcionamento das instituições, e o desejo de promover intercâmbio metodológico entre o Direito e as ciências sociais.
A primeira edição consolidou se em torno de painéis presenciais que congregaram pesquisadores de diversas regiões do país, com forte participação de graduandos e pós graduandos interessados em metodologias qualitativas e quantitativas aplicadas ao fenômeno jurídico. A recepção calorosa do público demonstrou que havia espaço – e urgência – para um evento dedicado a evidências empíricas sobre o sistema de justiça. Por isso, o SEED passou a ocorrer anualmente, ampliando parcerias institucionais e temáticas. Já em 2018, incorporou mesas sobre criminologia crítica, sociologia das profissões jurídicas e antropologia do Direito, sinalizando a abertura a perspectivas interdisciplinares.

O percurso do SEED, contudo, não ficou imune às turbulências do cenário contemporâneo. Com a pandemia de Covid 19, o comitê organizador foi forçado a interromper a preparação da terceira edição presencial e redesenhar toda a dinâmica para o ambiente virtual. O SEED III, realizado em 2021, transformou se num ciclo de 15 conferências online distribuídas ao longo do ano. O formato remoto, embora desafiador, expandiu exponencialmente o alcance geográfico do evento, permitindo a participação de pesquisadores da América Latina, Europa e África. Esse conjunto de encontros culminou numa conferência de encerramento que homenageou o professor Pedro Rodolfo Bodê de Moraes, cofundador do SEED, falecido poucas semanas antes – um momento de profunda comoção, mas também de reafirmação do compromisso coletivo com a produção de conhecimento crítico sobre o Direito.

A Universidade Católica de Pelotas (UCPel) esteve presente desde a edição inaugural, representada pela participação do professor Luiz Antônio Bogo Chies. Em 2024, a instituição assumiu papel central: o SEED 2024 passou a ser organizado pelo Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Estudos Criminais Penitenciários (GITEP), em articulação com o Programa de Pós Graduação em Política Social e Direitos Humanos (PPGPSDH) e o curso de Direito da UCPel. Essa migração para Pelotas não apenas simbolizou o fortalecimento da rede que sustentava o seminário, mas também sublinhou o esforço de interiorização e democratização do debate acadêmico, deslocou o dos grandes centros tradicionais para outras regiões do país.

Outra inovação importante dizia respeito ao formato híbrido adotado a partir desta edição. Reconhecendo os benefícios do ambiente virtual – sobretudo para quem carecia de recursos para deslocamento – e a insubstituível riqueza dos encontros presenciais, o SEED 2024 ofereceu Grupos de Trabalho (GTs) online, ao passo que as conferências magnas ocorreram presencialmente no campus da UCPel, com transmissão em tempo real. Essa combinação buscou maximizar a participação nacional e internacional, sem abrir mão da convivência acadêmica que favoreceu a construção de parcerias e projetos conjuntos.

Quanto à temática, o evento abandonou a numeração sequencial e adotou a marcação anual, reforçando o caráter cíclico de atualização e diálogo com os desafios do momento. Em 2024, o mote escolhido – “Tecnopolíticas de Controle e Sistema de Justiça Criminal” – refletiu a crescente interpenetração entre tecnologias digitais, formas de governo e práticas punitivas. Drones, softwares de reconhecimento facial, sistemas de análise preditiva, algoritmos de recomendação e bases massivas de dados passaram a mediar, de maneira cada vez mais opaca, decisões sobre investigação, processo, condenação e execução penal. Ao mesmo tempo, plataformas de mídias sociais se tornaram arenas privilegiadas de disputa discursiva, produção de pânicos morais e legitimação de políticas de endurecimento penal.

Diante desse quadro, o SEED 2024 propôs se a examinar, de modo empírico e interdisciplinar, como as tecnopolíticas reconfiguraram a segurança pública, a justiça criminal e os direitos fundamentais. Para tanto, foram definidos oito GTs que cobriram desde a hipermilitarização da vida cotidiana até os impactos de crimes informáticos, passando por violências de gênero, decolonialidade, fascismo punitivo e políticas de drogas. Cada GT foi coordenado por pesquisadores(as) de referência nacional e internacional, garantiu pluralidade teórica e rigor metodológico. Ao privilegiar a submissão online de artigos completos, o seminário reafirmou o compromisso com a circulação aberta de dados, metodologias e resultados de pesquisa, fortalecendo uma cultura de transparência acadêmica.

Vale destacar que o SEED se diferenciou de muitos congressos jurídicos por exigir, já na fase de inscrição, a apresentação de pesquisa empírica em curso ou concluída. Isso significou que propostas estritamente dogmáticas ou ensaísticas, desvinculadas de evidências observacionais, não atenderam aos critérios de avaliação. Tal orientação estimulou a adoção de métodos variados – etnografias, surveys, análise de redes, mineração de dados, experimentos de campo, estudos de caso – e favoreceu a formação de jovens pesquisadores habituados a dialogar com dados e não apenas com normas.
Além dos GTs, a programação incluiu conferências de abertura e encerramento com especialistas de projeção internacional, minicursos metodológicos e oficinas práticas sobre software de análise qualitativa, estatística aplicada e ética em pesquisa. A presença do professor Luiz Eduardo Soares, um dos mais influentes pensadores da segurança pública no Brasil, sinalizou a relevância do debate para políticas públicas. Outras mesas redondas abordaram temas como justiça digital, regulação algorítmica e transparência de dados governamentais, que se alinharam ao escopo do evento”.

O dossiê que ora se apresenta pretende registrar, divulgar e fomentar a produção científica oriunda do SEED 2024. Ao reunir artigos selecionados dos GTs, o dossiê visou não apenas preservar a memória do seminário, mas também disponibilizar a um público mais amplo – acadêmicos, operadores do Direito, gestores públicos, organizações da sociedade civil – evidências robustas sobre os efeitos concretos das tecnopolíticas de controle. Essa iniciativa reforçou a vocação do SEED como plataforma de difusão de pesquisas que dialogavam com problemas sociais urgentes, contribuindo para o desenho de políticas mais justas, transparentes e eficazes.

Importa salientar que, ao longo de suas edições, o SEED consolidou se como uma comunidade epistêmica que transcendeu o evento anual. Muitos projetos colaborativos, orientações de pós graduação e publicações coletivas nasceram de encontros informais nos corredores do seminário ou em fóruns virtuais mantidos pelo grupo. O SEED 2024 pretendeu aprofundar essa lógica de rede, estimulando a criação de grupos interinstitucionais de pesquisa e a submissão de projetos a agências de fomento nacionais e internacionais. A expectativa foi que, a partir do eixo “tecnopolíticas de controle”, surgissem observatórios, bases de dados compartilhadas e linhas de pesquisa comparadas entre diferentes regiões do país e do exterior.

Em síntese, o SEED 2024 se apresentou como espaço estratégico para (re)pensar o sistema de justiça criminal à luz das inovações tecnológicas e de seus desdobramentos sociais. Ao privilegiar abordagens empíricas, o evento buscou escapar da armadilha do discurso meramente normativo e forneceu subsídios concretos para a crítica e a transformação das práticas jurídicas. Mais do que um congresso, o SEED foi um laboratório de ideias e métodos, comprometido com a produção de conhecimento que pudesse orientar políticas públicas sensíveis às desigualdades e aos direitos humanos.
Nos próximos tópicos deste dossiê, detalhamos cada um dos GTs, apresentamos os textos selecionados e discutimos as principais contribuições teóricas e metodológicas advindas das pesquisas. Por ora, coube registrar que o caminho percorrido desde 2016 demonstrou a vitalidade de uma comunidade acadêmica que, mesmo diante de crises sanitárias, políticas e econômicas, insistiu em afirmar a centralidade dos dados, da interdisciplinaridade e do rigor científico para compreender – e transformar – o Direito em ação.

Artigos destacados

No artigo “A hipermilitarização nas plataformas digitais: barreiras ao empoderamento feminino”, Laura Alves Menon e Felipe Schmals Silveira partiram da tese de que o Brasil viveu um estágio de hipermilitarização que extrapolou o mero militarismo tradicional, infiltrando símbolos bélicos, hierarquias de força e lógica de guerra em múltiplas camadas do tecido social — da segurança pública à economia, da política à cultura pop — e encontrando nas redes sociais o catalisador perfeito para sua difusão. Mediante etnografia digital e análise qualitativa de vídeos, memes e reels coletados em Instagram, WhatsApp e YouTube, os autores mostraram como conteúdos aparentemente “humorísticos” ou “motivacionais” carregaram hashtags neutras (#meme, #piada) para legitimar discursos pró armas, exaltar forças de segurança e ridicularizar o feminismo, naturalizando a subjugação das mulheres ao espaço doméstico e reiterando a ideia de que a virilidade militarizada era requisito de ordem social. Ancorados em Bourdieu (violência simbólica), Segato (corpos femininos como campo de guerra), Crenshaw (interseccionalidade) e na noção de hipermilitarização de Bordin, os autores argumentaram que esse soft power belicista alimentou um ethos do “guerreiro patriarcal”, no qual a sensação de insegurança fabricada pelo Estado e pelos algoritmos convergiu com o pânico moral conservador para justificar políticas de força, ampliar o monopólio da violência estatal e bloquear o empoderamento socioeconômico feminino. O estudo concluiu que, ao transformar a misoginia em entretenimento viral e associar segurança à masculinidade armada, as plataformas digitais se tornaram pilares de um regime tecnopolítico que reforçou desigualdades de gênero, demandou regulação pública e impôs à agenda feminista o desafio de desmontar a estética bélica que então estruturou a cultura online.

No artigo “Grupos comunitários de mulheres como forma de enfrentamento da violência estatal e de gênero: uma experiência no contexto da extensão universitária”, Júlia Rodrigues Tarragô apresentou um denso relato reflexão sobre o projeto de extensão “EnCorPA – Corpos, Política e Autonomia”, desenvolvido na UFSM, para demonstrar como a construção de coletivos femininos de base territorial pôde se converter em estratégia concreta de resistência às múltiplas violências que atravessaram corpos femininos periféricos. Dialogando com a pedagogia libertadora de Paulo Freire, o conhecimento situado de Donna Haraway e os feminismos criminológicos críticos de Fernanda Martins, a autora descreveu oficinas intergeracionais de pintura, macramê, escrita de cartas, varais de frustrações e rodas de conversa que, ao longo de 2024, mobilizaram mulheres do bairro Cerrito (Santa Maria/RS) a compartilharem experiências, elaborarem dores e fortalecerem redes de apoio mútuo. A metodologia extensionista, baseada em relatórios participativos e observação direta, evidenciou que a criação de espaços seguros e horizontalizados favoreceu a emergência de narrativas que escaparam à tutela penal, deslocando o foco do “endurecimento punitivo” para práticas de cuidado comunitário e geração de renda. O artigo sustentou que, ao reconhecer a interseccionalidade de gênero, raça e classe, tais grupos comunitários se tornaram dispositivos de autonomia política, desafiando a lógica estatal necropolítica e inspirando novas agendas acadêmicas comprometidas com a transformação social a partir do território.

No artigo “Os desafios impostos aos filhos do feminicídio pela ausência de aplicabilidade da Lei 14.717/2023”, Isabella Rochedo da Silva e Marina Nogueira Madruga articularam uma análise jurídico sociológica que expôs a contradição entre o reconhecimento legislativo da vulnerabilidade de crianças e adolescentes órfãos de feminicídio e a inoperância administrativa que os manteve desassistidos. Partindo de revisão bibliográfica sobre violência letal de gênero e de dados recentes do Atlas da Violência, do SINESP e do FBSP, as autoras demonstraram que o feminicídio, então tipificado de forma autônoma pelo art. 121 A do Código Penal, não apenas ceifava vidas femininas — majoritariamente no âmbito doméstico —, mas também lançava descendentes a um ciclo de trauma, insegurança alimentar e evasão escolar. A Lei 14.717/2023, que instituiu pensão especial de um salário mínimo para esses órfãos, permaneceu sem regulamentação pelo INSS, obrigando familiares a percorrer a via judicial — onerosa, demorada e pouco acessível — para garantir o benefício. O artigo examinou os primeiros precedentes, como a decisão da 27ª Vara Federal de Ipubi PE e a sentença do Tribunal do Júri de Laranjal do Jari AP, revelando que a efetividade da norma dependeu de interpretações pioneiras do Judiciário, enquanto a autarquia previdenciária se manteve inerte. Ao evidenciar como a lacuna regulamentar agravou a desestruturação familiar e aprofundou desigualdades socioeconômicas, as autoras defenderam a edição imediata de portaria operacional, campanhas de informação jurídica e protocolos intersetoriais de atendimento para que o direito positivado se traduzisse em proteção material às vítimas indiretas do feminicídio.

No artigo “Discursos de gênero e violência nas redes sociais: uma análise das redes conservadoras e de extrema direita”, Laura Alves Menon, Raíssa Ferreira Miranda e Aknaton Toczek Souza apresentaram os resultados preliminares de uma etnografia digital conduzida no Laboratório de Sociologia do Direito da UCPel, na qual cartografaram grupos separatistas e ultraconservadores do Sul do Brasil que atuavam em WhatsApp, Instagram, Facebook, X/Twitter e Discord. A partir de coleta diária de postagens, observação participante e entrevistas em profundidade, o estudo demonstrou como essas redes articularam tecnopolíticas de extrema direita, mercantilização de símbolos regionais e guerra cultural para produzir, viralizar e monetizar conteúdos misóginos e antigênero. Os autores revelaram que a violência simbólica contra mulheres e pessoas LGBTQIAP+ foi recodificada em memes, piadas e produtos (camisetas, adesivos) que exaltaram um “ethos do guerreiro” sulista — viril, militarizado, cristão — legitimando a subordinação feminina como pilar da ordem moral. Ao dialogar com Bourdieu, Segato, Crenshaw e a criminologia cultural, o artigo evidenciou que o humor serviu como estratégia de normalização do ódio: piadas que ridicularizaram o feminismo ou sexualizaram o Carnaval geraram alto engajamento algorítmico, ampliando o alcance de discursos que defenderam o armamento civil, o fechamento de instituições democráticas e a punição exemplar de “inimigos internos”. Os achados apontaram que a misoginia digital não foi fenômeno episódico, mas parte de um ecossistema tecnoconservador lucrativo que converteu cliques em capital político e financeiro, reforçando hierarquias de gênero e racializando a identidade “sul livre”. Ao final, os autores defenderam que políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero online deveriam combinar regulação de plataformas, alfabetização midiática e monitoramento interdisciplinar para desmantelar a infraestrutura que sustentou a guerra cultural contra os direitos das mulheres.

No artigo “Neoconservadorismo e controle sobre os corpos: a disputa pelo direito ao aborto”, Raíssa Ferreira Miranda e Aknaton Toczek Souza investigaram como a criminalização do aborto no Brasil funcionou como dispositivo biopolítico de dominação patriarcal, articulando teoria foucaultiana, análise jurídica e cartografia dos discursos neoconservadores que se mobilizaram contra a ADPF 442 — ação em que o voto da ministra Rosa Weber defendeu a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana. Partindo da premissa de que o Estado exerceu poder disciplinador ao regular corpos femininos, os autores mostraram que a proibição penal perpetuou desigualdades de raça e classe, empurrando mulheres vulneráveis para procedimentos clandestinos e inseguros. O texto examinou a “juridificação reativa”, evidenciando como parlamentares, influenciadores digitais e lideranças religiosas acionaram estratégias midiáticas — memes chocantes, narrativas de “pânico moral”, hashtags pró vida — para bloquear avanços nos direitos reprodutivos; gráficos do Google Trends revelaram que o “movimento antiaborto” sustentou volume de interesse maior e mais constante que a “legalização do aborto”, confirmando a força dessa mobilização online. Casos concretos, como as postagens da vereadora Comandante Nádia e da deputada Ana Campagnolo, ilustraram a instrumentalização de imagens fetais e acusações de “execução estatal” para criminalizar profissionais de saúde e reforçar a hierarquia sexo genérica. Ao deslocar o debate do campo moral para o dos direitos fundamentais — dignidade, igualdade, autonomia —, o voto de Weber desafiou o aparato biopolítico que submetia a sexualidade feminina, mas a reação coordenada da extrema direita mostrou que a disputa pelo aborto foi núcleo da guerra cultural contemporânea: controlar a reprodução equivaleu a manter a ordem social. Concluíram que romper esse cerco exigiu políticas públicas baseadas em evidências, regulação das plataformas digitais e afirmação intransigente dos direitos humanos das mulheres, condição indispensável para uma democracia substantiva.

No artigo “Ecos da Doutrina de Segurança Nacional na Segurança Pública do Brasil Redemocratizado: uma revisão das teses de doutorado”, Marcus Vinicius da Silva Ferreira Melo realizou uma extensa e detalhada investigação sobre as permanências autoritárias que estruturaram o modelo de segurança pública brasileiro contemporâneo, demonstrando que a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), forjada durante a ditadura empresarial-militar, continuou sendo um alicerce ideológico das práticas repressivas atuais. A partir de um levantamento criterioso de teses de doutorado disponíveis na CAPES, o autor realizou uma análise crítica da produção acadêmica sobre o tema, evidenciando tanto as lacunas quanto as contribuições das investigações existentes. O texto propôs que a DSN, desenvolvida na Escola Superior de Guerra como uma resposta ao avanço das pautas populares e à influência da Guerra Fria, consolidou um modelo de Estado voltado à eliminação simbólica e física do inimigo interno — anteriormente os comunistas, depois os pobres, negros e moradores de periferias — sob a justificativa da segurança pública. Além disso, mostrou que tal doutrina não foi desmantelada com a redemocratização, tendo sido absorvida pela Constituição de 1988 e replicada pelas estruturas policiais e militares que mantiveram forte influência sobre o aparato estatal. O autor mobilizou uma rica bibliografia crítica, com destaque para Jorge Zaverucha, Bicudo e os relatórios da Arquidiocese de São Paulo, analisando a continuidade institucional do autoritarismo, a permanência das estruturas militares nas polícias estaduais e a cooptação do sistema de justiça, reforçando a tese de que o Brasil nunca rompeu efetivamente com o paradigma securitário forjado sob tutela militar. O artigo, ao final, denunciou o silenciamento da crítica criminológica e a resistência das instituições em promover um modelo de segurança pública orientado por direitos humanos e justiça social, tornando se, assim, uma leitura fundamental para compreender a genealogia autoritária da violência estatal no Brasil.

No artigo “Colonização e criminalização: a prisão de pessoas indígenas como perpetuação da colonialidade”, Bruna Hoisler Sallet construiu uma análise crítica e profundamente embasada sobre os vínculos históricos e estruturais entre o processo colonial e o atual encarceramento de indígenas no Brasil, com foco na realidade da Penitenciária Estadual de Dourados (MS), que abrigava a maior população indígena privada de liberdade no país. A autora partiu de um referencial teórico decolonial para evidenciar como a colonialidade — compreendida como a persistência de um padrão de dominação racial, epistêmica e territorial — se manifestou no sistema penal brasileiro por meio da invisibilização das especificidades culturais e da sistemática negação de direitos garantidos, como o acesso a intérpretes, perícias antropológicas e participação das comunidades nos processos. Com base no “Relatório do Mutirão de Atendimento às pessoas indígenas presas na PED”, Sallet revelou que mais de 85% dos indígenas entrevistados não tiveram intérprete durante seus processos penais e mais de 90% não foram submetidos a qualquer avaliação antropológica, em flagrante descumprimento da Resolução nº 287/2019 do CNJ. A pesquisa mostrou ainda que a prisão de indígenas, em especial Guarani e Kaiowá, foi uma expressão da continuidade de um modelo de controle social que criminalizou a luta por território e deslegitimou formas de vida que desafiavam a racionalidade produtivista do direito civil moderno. Assim, o artigo denunciou que o sistema prisional operou como uma ferramenta de assimilação forçada e apagamento étnico, perpetuando as violências do colonialismo sob as formas contemporâneas da punição estatal. Ao fazê lo, convocou o campo jurídico a repensar radicalmente seus fundamentos e práticas frente à diversidade cultural e aos direitos coletivos dos povos originários.

No artigo “Desestabilizando o conceito de droga na legislação brasileira para a História do Direito”, Rodrigo Dantas Valverde realizou uma instigante arqueologia jurídica e semântica sobre a formação do regime normativo das substâncias entorpecentes no Brasil entre os anos de 1890 e 1932, questionando a retroprojeção do conceito contemporâneo de “droga” sobre contextos históricos nos quais tal categoria sequer existia. Em vez de assumir o conceito de droga como dado e estável, o autor adotou uma postura metodológica atenta às descontinuidades e pluralidades terminológicas mobilizadas nos documentos legais, manuais médicos e dicionários da época — como “substâncias venenosas”, “inebriantes”, “tóxicas” e “entorpecentes” — argumentando que apenas a partir de 2006, com a promulgação da Lei nº 11.343, o termo “droga” passou a ocupar lugar central no ordenamento jurídico brasileiro de forma consolidada. Ancorado em autores como Koselleck e Hespanha, Valverde propôs o uso da expressão “substâncias entorpecentes” como categoria analítica mais rigorosa para pesquisas históricas, resgatando, ao mesmo tempo, o papel das alfândegas, das práticas médicas e das convenções internacionais na construção gradual de um regime jurídico de controle. O artigo desmontou a linearidade das narrativas proibicionistas e denunciou o anacronismo frequente na historiografia tradicional, ao mesmo tempo em que contribuiu decisivamente para os estudos sobre a genealogia da repressão às substâncias psicoativas no Brasil. Sua abordagem revelou como o processo de criminalização foi marcado por disputas epistemológicas e interesses políticos, lançando luz sobre a construção social da proibição e sobre as múltiplas camadas de sentido que o termo “droga” veio a concentrar ao longo do tempo.

Conclusão

À medida que este dossiê se encerrou, tornou se evidente que o Seminário de Estudos Empíricos em Direito (SEED) já não foi apenas um evento acadêmico: converteu se numa verdadeira comunidade epistêmica, capaz de articular pesquisa, formação e incidência pública em torno de problemas jurídicos e sociais centrais ao Brasil contemporâneo. Desde a sua gênese, em 2016, o seminário apostou na primazia dos dados empíricos como antídoto ao dogmatismo normativo; em 2024, ao eleger as tecnopolíticas de controle como fio condutor, reafirmou esse compromisso e demonstrou maturidade para enfrentar dilemas que extrapolaram as fronteiras disciplinares do Direito. O deslocamento para Pelotas, o formato híbrido e a pluralidade institucional ampliaram o alcance da iniciativa e sinalizaram uma estratégia deliberada de interiorização e democratização do debate acadêmico, vital num país marcado por assimetrias regionais profundas.

O eixo “Tecnopolíticas de Controle e Sistema de Justiça Criminal” se revelou particularmente fecundo para reunir pesquisas que, partindo de objetos empíricos diversos, convergiram na análise crítica das formas de poder mediadas por tecnologias digitais. Os artigos aqui reunidos demonstraram que drones, algoritmos preditivos, redes sociais, bases de dados biométricos e softwares de reconhecimento facial não foram instrumentos neutros; ao contrário, reconfiguraram hierarquias de gênero, raça e classe, intensificaram processos de criminalização seletiva e renovaram repertórios autoritários legados pelo passado colonial e ditatorial brasileiro. Tal constatação — ancorada em evidências que foram da etnografia digital à análise estatística — impôs uma agenda de pesquisa que combinou vigilância metodológica e sensibilidade às desigualdades estruturais que atravessaram a sociedade.

Os oito trabalhos selecionados materializaram essa agenda. A investigação de Laura Alves Menon e Felipe Schmals Silveira sobre hipermilitarização nas plataformas digitais expôs como memes “inocentes” legitimaram a virilidade armada e corroeram conquistas feministas; Júlia Rodrigues Tarragô, por sua vez, mostrou que coletivos territoriais de mulheres puderam subverter a lógica punitiva ao instituir práticas de cuidado e geração de renda. O estudo de Isabella Rochedo da Silva e Marina Nogueira Madruga evidenciou a distância entre o texto da Lei 14.717/2023 e sua execução, revelando a letargia administrativa que perpetuou a vulnerabilidade de órfãos do feminicídio. Já a etnografia conduzida por Menon, Miranda e Souza cartografou a monetização da misoginia em redes ultraconservadoras do Sul do país, enquanto Miranda e Souza, examinando a ADPF 442, demonstraram como a criminalização do aborto serviu de dispositivo biopolítico para controlar a reprodução feminina. Marcus Melo revisitou as teses de doutorado sobre a Doutrina de Segurança Nacional e comprovou a persistência de estruturas autoritárias na segurança pública; Bruna Sallet denunciou a colonialidade que sustentou o encarceramento indígena em Dourados; e Rodrigo Valverde, ao historicizar o conceito de “droga”, questionou anacronismos que ainda informavam políticas proibicionistas.

Em conjunto, esses textos ilustraram a potência de abordagens empíricas multimetodológicas: etnografias online e presenciais, revisões sistemáticas, análises jurisprudenciais, estudos de caso e genealogias históricas conviveram sem hierarquias, demonstrando que a complexidade dos fenômenos investigados exigiu ecumenismo metodológico. Mais do que aplicar técnicas, os autores cultivaram reflexividade crítica — fosse ao explicitar limitações de acesso a dados governamentais, fosse ao reconhecer o lugar de fala de pesquisadoras que atuaram em territórios periféricos. Tal postura confirmou que rigor científico e engajamento social não foram excludentes; antes, reforçaram se mutuamente quando a pesquisa se orientou por problemas públicos concretos.

Do ponto de vista normativo, os achados reunidos neste dossiê fornecem subsídios robustos para o desenho de políticas públicas. As evidências sobre misoginia algorítmica e militarização do imaginário indicaram a urgência de regulações que impuseram transparência a plataformas digitais e algoritmos de segurança; os dados sobre órfãos do feminicídio, encarceramento indígena e permanências autoritárias na segurança pública convocaram o Estado a rever protocolos, capacitar agentes e criar mecanismos de controle social efetivo. Ademais, a crítica à criminalização seletiva de substâncias psicoativas e à proibição do aborto reforçou a necessidade de reformas legais ancoradas em direitos humanos, saúde pública e justiça social. Foi oportuno lembrar que, embora cabalmente documentados, muitos desses problemas permaneceram invisíveis na esfera pública, fosse por interesses políticos, fosse pela opacidade tecnológica — cenário que ressaltou o papel de iniciativas como o SEED na produção e difusão de conhecimento acessível.

Nesse sentido, o SEED 2024 delineou caminhos promissores. A criação de grupos interinstitucionais de pesquisa, o incentivo à submissão de projetos coletivos a agências nacionais e internacionais, a perspectiva de observatórios sobre tecnopolíticas de controle e a manutenção de um repositório de dados abertos figuraram entre as metas anunciadas. Tais iniciativas puderam contribuir para a consolidação de um campo de estudos empíricos em Direito que dialogasse com a América Latina e o Sul Global, compartilhando metodologias, indicadores e experiências de resistência às múltiplas formas de violência estatal e social. A aposta em formato híbrido, por sua vez, potencializou a participação de pesquisadoras e pesquisadores que, historicamente, estiveram à margem dos grandes congressos, fosse por limitações financeiras, fosse por barreiras geográficas — uma democratização que, esperou se, se refletiu também na diversidade de objetos e perspectivas teóricas.

Em última instância, a trajetória aqui registrada confirmou que o Direito, enquanto prática social, não pôde ser compreendido — nem transformado — sem atenção às evidências empíricas que iluminaram seus efeitos concretos sobre corpos, territórios e subjetividades. Ao encerrar este dossiê, portanto, reafirmamos uma convicção que perpassou todos os textos: conhecer foi intervir. A produção de diagnósticos rigorosos sobre hipermilitarização, misoginia digital, colonialidade penal, autoritarismo securitário e moralidades punitivas não se esgotou na descrição; ela carregou a promessa de subsidiar políticas mais justas, transparentes e sensíveis às desigualdades. Que os debates inaugurados ou aprofundados nas páginas que antecederam esta conclusão inspirassem novas pesquisas, fortalecessem redes de solidariedade acadêmica e contribuíssem para um sistema de justiça comprometido com a dignidade humana.

Até o próximo SEED!

 

Aknaton Toczek Souza

Pelotas, RS

Giovane Matheus Camargo

Paranaguá, PR

Publicado: 20-05-2025
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